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Rodas de Samba se multiplicam no Recife e promovem a valorização da coletividade

Desde o fim da pandemia da Covid-19, rodas de samba conquistam ainda mais público em espaços do Recife e Região Metropolitana. Sambistas e pesquisadores apontam que o formato favorece encontros e confraternizações.

Camila Estephania

Publicado: 23/08/2025 às 08:00

A De Cara com o Samba é uma das maiores rodas de samba que existem no Recife atualmente./Divulgação

A De Cara com o Samba é uma das maiores rodas de samba que existem no Recife atualmente. (Divulgação)

O Recife tem uma boa relação com o samba há algumas décadas, mas nunca existiram tantas rodas de samba espalhadas pela região metropolitana da capital pernambucana, como tem sido visto nos últimos dois anos. Até mesmo espaços dedicados ao frevo têm aberto as portas para programações do gênero musical carioca, trazendo à tona um momento de respeito e colaboração entre as cenas culturais.

“Cada roda de samba no Recife hoje tem um público específico. No Samba da Pitomba vai um pessoal mais alterna, que gosta de frevo, maracatu… A De Cara com o Samba tem um público mais raiz, mas que vem se renovando também. O samba foi avançando em outras regiões e a internet permite isso”, observa Alcir Presidente, que é músico e um dos fundadores das duas rodas citadas.

Os projetos surgiram para atender demandas de épocas diferentes. Criado há dois anos, o Samba da Pitomba acontece uma vez por mês na sede do bloco da Pitombeira dos Quatro Cantos, onde é montada uma roda de samba 360°, em que o público fica ao redor da banda. O formato é o mesmo do De Cara com o Samba, que já acontece há sete anos no Círculo Militar do Recife, mas as duas rodas guardam algumas diferenças em relação ao repertório e à dinâmica com os espectadores.

Considerada uma das maiores rodas de samba da região, a “De Cara com o Samba” já chegou a reunir cerca de 3 mil pessoas em um só dia. A proporção do evento pede um repertório tradicional mais fechado, enquanto o “Samba da Pitomba” permite maior troca com o público, que fica mais próximo da banda. De acordo com os sambistas, esse contato passou a ser mais requisitado especialmente após a pandemia da Covid-19.

Pesquisador de samba no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, o professor Felipe Trotta atesta as observações da cena. “O isolamento gera como resposta justamente a aproximação, e a roda de samba tem essa particularidade de produzir esse encontro. Ela é fundada na ideia de que as hierarquias entre pessoas diferentes são um pouco mais diluídas”, diz

“As hierarquias até existem na roda, mas a não separação entre palco e público, como acontece em shows de rock e pop, ressalta a informalidade, que é um valor importante em ambientes coletivos”, examina.

Além disso, Trotta aponta que uma das razões que pode ter influenciado na alta das rodas é o repertório engajado. “As músicas têm a espontaneidade de temas que estão muito vivos no debate social, como a valorização das raízes negras, o antiimperialismo, a coletividade. Tudo isso sempre esteve no repertório do samba, especialmente a partir das décadas de 1950 e 1960”, analisa. "Muitas pessoas procuram a roda de samba como espaço de confraternização e até de repensar a própria posição do racismo na sociedade brasileira”, completa ele.

REPERTÓRIO

O Samba do Bonfim é um exemplo de roda de samba que tem a reverência à negritude como uma das suas principais motivações. “Eu já tocava há muito tempo no Pagode do Didi e quis transportar um pouco dele para Olinda com o Samba do Bonfim, voltado para um público trabalhador e negro. A gente tem muito claro que o samba é do povo e que precisamos valorizar as raízes”, diz o músico Felipe Reis, que fundou o projeto há dois anos.

Uma vez por mês, a iniciativa acontece em algum local do Sítio Histórico de Olinda, sempre priorizando o repertório com a velha guarda do samba, como Adoniran Barbosa, Dona Ivone Lara, Beth Carvalho e Fundo de Quintal. Mas também há espaço para produções mais jovens, como o pagode dos anos de 1990, e outras expressões da música negra, como samba duro, afoxé, maracatu e coco.

O cantor Ellyson Marques, que ganhou fama como vocalista da banda de brega Sentimentos, também traz referências de outros gêneros para a roda Com Amor e Samba, criada por ele neste ano. O projeto acontece uma vez por mês no Bar do Possi, um espaço de referência para a cena do samba e do pagode, localizado no bairro da Torre, no Recife.

“Me inspiro muito em projetos de pagode como o Numanice, da Ludmilla, porque ela une muita coisa e eu estou nessa caminhada também. Como me destaquei em outros gêneros, estou tentando migrar o meu público pro samba e mostrar que ele também é bom”, comenta o músico, que inclui suas músicas de brega, em roupagem de samba, no repertório.

O projeto foi criado após sua saída da Sentimentos, com a proposta de resgatar as suas raízes. “Minha trajetória começou no samba. Quando criança, meu pai me levava pro Centro, pra tocar no (extinto) Pagode do Peninha, no Pagode do Didi”, lembra. No entanto, o artista avalia que os sambistas recifenses foram desvalorizados durante muitos anos, o que teria provocado uma evasão na cena.

Agora, acontece o movimento contrário. “Com a evolução da internet, os artistas puderam mostrar os trabalhos e puderam girar mais. Muita gente está migrando, o samba vem numa crescente muito forte no Brasil todo”, observa.

O professor Felipe Trotta considera importante a reprodução de formatos mais clássicos, mas percebe esse intercâmbio entre as cenas como algo positivo. “Se você andar pela Lapa, no Rio de Janeiro, vai ver rodas com repertórios muito variados, que têm uma percussão mais forte, que têm teclado, que usam até guitarra”, indica.

De acordo com o pesquisador, até mesmo na cidade onde o gênero se cristalizou existem rodas que tocam músicas de outros gêneros em ritmo de samba. “O samba é um mundo e as rodas de samba estão traduzindo esse mundo. Eu acho isso muito legal e é até uma chave para essa popularização das rodas”, avalia.

RESGATE DAS ORIGENS

Em geral, os produtores e músicos das novas rodas de samba do Recife e Região Metropolitana se inspiram em outras rodas de samba consagradas que se espalham pelo pa[is. São os casos das cariocas Cacique de Ramos e Samba do Trabalhador e da recifense Pagode do Didi.

“Esse movimento de crescimento das rodas é visível em todo o Brasil. Recife tem uma ligação histórica com o samba e, nos últimos anos, observamos uma tendência forte de ‘volta às origens’, com renovado interesse por manifestações culturais como a roda de samba”, diz o produtor Carlos Melo.

Ele organiza os projetos Samba Pra Cima, Pagode na Ladeira e Samba da Boa Nova, que acontecem em diferentes locais do Recife e de Olinda. Todas foram criadas há menos de um ano e já atraem públicos que ficam entre 500 e 1.000 pessoas em cada edição. O sucesso, além de refletir o bom momento do samba no Brasil, também demonstra a força velada que o samba sempre teve em Pernambuco.

De acordo com o livro “Tem samba na terra do frevo”, de Hugo Menezes Neto, o termo “samba” já era usado em Pernambuco desde o final do século XIX, quando designava festas e brincadeiras, sendo aplicado muitas vezes na descrição de cocos e maracatus. Desde a virada do século existiam grupos de amigos que circulavam com instrumentos improvisados tocando o próprio estilo do samba pelas ruas dos subúrbios recifenses.

Na década de 1930, a chegada das escolas de samba no Carnaval do Recife despertou um sentimento de rivalidade entre o samba e o frevo, que mobilizou, durante muitos anos, mediadores intelectuais, gestores e foliões em debates sobre identidade. Os efeitos da “batalha frevo-samba” reservou um espaço mais tímido para o gênero carioca nas programações recifenses, mas sambistas da cidade relatam que ele sempre esteve muito forte nas periferias.

“Sempre existiram rodas em lugares como o Janga e o Morro da Conceição, mas em formatos mais informais”, lembra Alcir Presidente. O próprio Pagode do Didi, que resiste até hoje, sempre teve um público cativo desde que foi fundado em 1981. Com o tempo, o bar tornou-se um ponto de encontro até mesmo de sambistas renomados do Brasil todo, quando passam pelo Recife.

A importância do seu papel na formação de músicos pernambucanos do gênero foi reconhecida pelo Governo de Pernambuco em 2010, quando deu o título de Patrimônio Vivo do Estado a Didi do Pagode, que fundou o bar. Ao lado das rodas de samba da periferia, o festival Samba Recife, considerado um dos maiores do país dedicado ao gênero, é outra evidência do prestígio atemporal que o estilo tem para uma parte significativa do público local.

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